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28 dezembro 2008

Leobaldo Bloomrana

Vamos começar as novidades com a publicação de um texto que redigi 3 semanas atrás. É o meu trabalho final para aquela que, talvez, tenha sido a melhor matéria do meu 2º semestre de UnB: Escrita e Sociedade na América Latina. Acho que ele será um resumo, síntese da minha produção intelectual (?) recente, assim como das minhas impressões sobre dois dos melhores livros que li nos últimos seis meses.
Espero que gostem, mas tenham paciência, pois é um texto longo para os padrões bloguísticos.

Protagonistas como Mediadores Culturais:

Uma Análise de Leopold Bloom (“Ulisses”) e Riobaldo Tatarana (“Grande Sertão: Veredas”)




Introdução

Dois dos escritores mais importantes e representativos do século XX não vieram de centros culturais do Ocidente, como os Estados Unidos, a França e a Inglaterra. Pelo contrário: nasceram em países “periféricos” da Europa e da América. Ambas são nações repletas de imensos potenciais ainda inconcretrizados, além de muitas excentricidades e peculiaridades. Estamos falando da Irlanda, pátria de James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941), e do Brasil, de João Guimarães Rosa (1908-1967).

Joyce é nativo de Dublin, e sua relação de amor e ódio com a capital irlandesa permeia toda a sua obra; muitas vezes isso se opera de maneira explícita, como quando a cidade é palco das ações dos personagens e tramas. Mesmo o seu exílio voluntário a partir de 1904 em outras localidades européias, como Paris e Zurique, em nenhum momento diminuiu o peso do universo cultural irlandês nos contos, poemas e romances joyceanos.

Rosa nasceu em Cordisburgo, interior de Minas Gerais. Também passou boa parte de sua vida no exterior, em razão de suas atividades diplomáticas. Tal empreitada foi facilitada pela paixão que ele nutria pelo estudo das línguas. Teve contato com várias delas, desde as mais tradicionais, como o alemão, o francês e o inglês, até as mais atípicas, como o sânscrito, o tupi e o lituânio. Mesmo assim, sempre estabeleceu contato estreito com populares da região rural de MG e outros estados brasileiros, o que exerceria forte influência na construção de suas obras.

Entre tantas semelhanças e diferenças entre James e João, há um ponto em que a literatura os une: suas maiores realizações são romances longos e épicos, que causaram grande impacto no meio literário internacional. O joyceano “Ulisses” (1922) chegou a ser proibido em países de língua inglesa, por ser considerado “imoral e obsceno” e ter seu caráter vanguardista incompreendido. O roseano “Grande Sertão: Veredas” (1956) dividiu opiniões à época de seu lançamento, mas logo foi amplamente premiado e bem-sucedido nas vendas. Ambos, à primeira impressão, parecem ter um caráter regionalista, quase de acerto de contas com a história do povo em que seus enredos se situam. Porém, uma análise mais cuidadosa veria o contrário: o sentido universal evocado por ambas. Em um caso, Dublin surge como metonímia do cosmopolitismo; n’outro, o Sertão é o mundo, seja pelo viés metafísico ou alegórico.

No decorrer deste trabalho, a pretensão é a de esmiuçar as relações entre estas duas obras-primas, através do seguinte recorte temático: como os protagonistas de ambos os romances operam a mediação cultural? Em outras palavras, como eles se relacionam com seus conterrâneos, com o peso da tradição e da modernização, além dos atos de reinvidicar e interpretar os seus povos para o leitor “exterior” a tal meio?


Bloom, o judeu errante

Leopold Bloom, 38 anos, é, na prática, o personagem principal de “Ulisses”. Sua primeira aparição, contudo, ocorre apenas no quarto dos 18 episódios da obra. É possível que James Joyce, nos três primeiros capítulos, tenha realizado uma transição, afinal eles são protagonizados por Stephen Dedalus, que já havia sido o destaque na obra anterior do autor, “Retrato do Artista Quando Jovem” (1916), um ‘bildungsroman’ (literalmente, romance de formação, pois conta a saga deste personagem desde a infância até a transição à fase adulta). Aliás, uma intepretação possível seria a de que, durante a trama de “Ulisses”, Stephen descobre-se “mero” coadjuvante, sendo ofuscado por Bloom, com quem traça uma paródica relação, visto que este age como um pai que procura o filho – uma inversão do relacionamento entre Odisseu (Ulisses) e Telêmaco, em mais uma das recorrentes alusões à “Odisséia” de Homero que povoam este romance joyceano.

Bloom leva uma vida relativamente pacata. Ele é agenciador de anúncios para um jornal, e seu grau de cultura não é nem erudito nem vulgar. Não é atormentado por dúvidas existenciais complexas, tampouco despreza sua mediana capacidade de pensar por si próprio. É casado com Molly Bloom, de quem suspeita adultério, e tem uma filha, Milly, madura para sua idade (16 anos) e muito parecida com a mãe. Enfim, é praticamente a vida típica de um semi-quarentão de classe média baixa. Há alguns fatores diferenciais, no entanto; por exemplo, o filho que morreu depois do parto, iniciando o desgaste matrimonial entre ele e Molly, e o peso de sua ascendência cultural e étnica.

Sobre isso, vamos falar mais detidamente. Leopold é judeu, embora tenha se convertido ao catolicismo para se casar com Molly, e não siga rigorosamente os ensinamentos judaicos. É também irlandês, embora seja tomado por estrangeiro dentro de sua própria terra. Para completar, possui uma perspectiva idealista e harmônica sobre a humanidade, o que corrobora com a agressiva atitude alheia, em uma mistura de segregação e desprezo pelo jeito sensível de ele encarar a realidade. Porém, Bloom, em razão de sua própria visão de mundo, procura transcender tais preconceitos, mesmo tendo várias de suas atitudes ainda direcionadas pelo legado que o cobre.

O anti-semitismo, especificamente da maneira como era praticado na Irlanda, é um dos focos de Joyce nesta obra, sendo que tal discussão alcança seu ápice no episódio 12, “Os Ciclopes”. É aqui que aparece um personagem ímpar na obra de Joyce, chamado simplesmente de O Cidadão. Ele encarna, em âmbito “micro”, como Joyce percebia o discurso sociopolítico de seu pai; em “macro”, as percepções e idéias da Irlanda como um todo. Isso é evidenciado pelo fato de ele ser um feniano (grupo separatista irlandês), assim como suas recorrentes alusões à mitologia local, passagens bíblicas (afinal, é um país em que 90% da população era católica) e até linguagem recheada de jargões científicos e jurídicos. Quando descobre a origem étnica de Bloom, move contra ele a sua ira. Sua arrogância e intransigência faz Leopold perder a paciência, e ir embora do bar em que estava, mas não sem antes disparar:

“– Mendelssohn era um judeu e Karl Marx e Mercadante e Espinoza. E o Salvador era um judeu e o seu pai era um judeu. O seu Deus. (...) Seu Deus era um judeu. Cristo era um judeu como eu.” (p. 398)

Em uma paráfrase bem humorada do episódio homônimo da “Odisséia”, o Cidadão / Ciclope, em estado de cólera, tenta atingir o protagonista com um objeto. Se no poema homérico joga uma pedra gigante, no romance joyceano é uma... caixa de biscoitos.

Paródias à parte, Joyce, ao invés de martirizar Bloom como vítima de preconceito, dá a ele a capacidade de impor sua autoridade, conseguindo argumentar à altura de seus adversários – de quebra, acima da mente fechada deles. Seu jeito pacífico e equilibrado lhe permite enfrentar seus inimigos e obstáculos utilizando apenas o dom da palavra. No decorrer de “Ulisses”, vemos um Leopold cada vez mais autoconsciente e sereno, a ponto de, no âmbito de sua vida íntima, aceitar naturalmente a conduta adúltera de sua esposa e, a partir disso, propor uma inversão nos termos da relação: pedir para tomar na cama o seu café-da-manhã, algo que não fazia desde a morte do filho, 11 anos antes, quando começou a servir o café para sua mulher. Nem é preciso dizer o quanto Molly fica perplexa com essa mudança de comportamento.

Quanto à mediação cultural, Leopold Bloom pode ser considerado um personagem que transita sem problemas entre o tipicamente irlandês e a cultura do resto da Europa. Embora compartilhe com seu “filho adotivo” Stephen Dedalus vários pontos de vista, ele não é abertamente assimilacionista; mas, se distingüe de muitos de seus amigos ao não possuir grande interesse nas lutas reinvidicatórias do nacionalismo irlandês. Da mesma maneira, admite preferir “um modo de vida continental a um insular” (p. 715), mas discorda, “tacitamente”, do tom antropocêntrico, quase personalista, que Stephen atribui ao papel do homem na literatura. Temos aqui, portanto, um personagem que não se pretende um tradutor, um intermédio entre a Irlanda e o resto do mundo, mas sim um homem muitas vezes delicado, que se contenta em passar seus dias discutindo “música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, (...) a igreja romana católica, o celibato eclesiástico, (...) o dia anterior...” (p. 715)

Resta ainda uma pergunta: com quem Joyce se identifica mais? Embora seja muito comum atribuir a Dedalus o status de alterego do autor, em razão de sua erudição, a relação tumultuada com o catolicismo e sua juventude ambiciosa e boêmia, também Leopold Bloom reflete bem as inovações joyceanas. Em primeiro lugar, por incorporar em si aquilo que se chamaria de “romance moderno”: ao invés de heróis previsíveis e narratividas lineares, temos aqui um anti-herói cuja trama está completamente à mercê de seus fluxos de consciência, limitações e fraquezas.

Segundo, o próprio tom monossilábico e áspero de Bloom em seus monólogos contribui para a riqueza lingüística de “Ulisses” com a mesma relevância que a fala intrincada e recheada de referências culturais de Dedalus. A própria maneira como ele entra no livro já indica o fetichismo que há em sua rotina idiossincrática:

“O Sr. Leopold Bloom comia com prazer os órgãos internos de aves e de outros animais. Ele gostava de uma sopa grossa de miúdos de aves, moela com nozes, um coração recheado assado, fatias de fígado fritas à milanesa, ovas de bacalhau tostadas. Mais do que tudo ele gostava de rins de carneiro grelhados que davam a seu paladar um sabor refinado de urina ligeiramente perfurmada.” (p. 83)

Por último, também podemos citar a recorrente nostalgia inserida no discurso de Leopold, talvez atribuível aos fracassos e problemas mal resolvidos de seu passado – daí o uso de “errante” como um provável aposto para ele. Lembrando que também o Odisseu homérico freqüentemente se sentia frustrado pela exaustiva busca que empreendeu após o fim da guerra, quando passou quase duas décadas tentando voltar para Ítaca e não cair nas ilusões, escapismos e fantasias surgidas no percurso.

Enfim, este mediador cultural joyceano é certamente mais introspectivo do que seus antecessores do “classicismo romântico”, e curiosamente se ampara no primeiro escritor do cânone ocidental (Homero) para dar e justificar esta guinada literária. Se nos lembrarmos, no entanto, que a idéia de ciclos é recorrente em “Odisséia”, não nos surpreendemos com esta escolha de Joyce: desconstruir não significa destruir, pois pode indicar reinvenção, ou mesmo revolução, no sentido dado ao termo na Grécia Antiga - ou seja, rupturas que não erradicam as formas anteriores às agora estabelecidas, mas que as recombinam de novas maneiras. Eis, portanto, a base do romance moderno inventado por “Ulisses”.


Riobaldo, o jagunço letrado

Agora, vamos comentar sobre o protagonista e narrador de “Grande Sertão: Veredas”: Riobaldo, também chamado de Tatarana e Urutú-Branco pelas suas façanhas no campo de batalha. Nascido nas últimas décadas do século XIX, ele narra para alguém – um doutor da cidade, Deus, Diabo ou mesmo uma de suas personalidades – os seus anos de jagunceiro. A sua saga é destrinchada, desde as pessoas com quem se relacionou até as tramas inusitadas por que passou.

É quase consenso dentre críticos literários do Brasil e do mundo que estamos a falar de um dos personagens mais enigmáticos da literatura latino-americana do século passado. Afinal, paira dúvida sobre o próprio ato de narrar, o que ele está a relatar. Logo, se o próprio emissor já encobre seu discurso com ambigüidades, é bem provável que tudo o mais, especialmente as situações relatadas, nunca sejam plenamente claras e definíveis.

A relação de Riobaldo com seu interlocutor também se pauta por esta retórica, que parece levar ao extremo seu bordão “Viver é muito perigoso”. Ao mesmo tempo em que ele fala e age como um típico relativista, esta postura absolutiza-se, e ele praticamente impõe a quem o ouve/lê o status de meio, mecanismo através do qual Riobaldo tira suas dúvidas e conclusões. Em outras palavras, não há espaço para o diálogo: o protagonista está mais preocupado em antes resolver seus próprios dilemas do que tentar uma imediata e aberta comunicação com seu interlocutor. É verdade que ele muitas vezes sente necessidade da legitimação daquele com quem conversa – seja ele humano ou sobrenatural. Por outro lado, seu monólogo é de uma progressiva construção de autoridade, em que ele paulatinamente se vê mais próximo de solucionar seu enigma existencial com a ajuda silenciosa de seu receptor.

Nesse contexto, o Pacto surge como uma das inúmeras metáforas e símbolos utilizados pelo livro para representar pontos mais concretos – ou mais abstratos, em alguns casos. Ou seja, não está explícito se ele recorreu ou não a uma aposta com o Diabo, tampouco se ela funcionou ou malogrou. É bem possível, no entanto, que ele insira como Pacto tudo aquilo que lhe seja ímpar e fora do que considera como convencionado e lógico. Dois exemplos são a relação “pecaminosa” com a andrógina Diadorim e as suspeitas que contrai sobre as intenções de Hermógenes. No primeiro caso, há o dilema trazido pela paixão homossexual, que o atormenta por toda a obra; no segundo, é difícil definir até que ponto as visões que ele teve sobre o carrasco de Joca Ramiro correspondem aos fatos ou se são delírios infligidos pelo temor quase paranóico (embora válido, em razão da traição de Hermógenes) que Riobaldo acumulava.

Outro aspecto notável da ‘magnus opum’ de Guimarães Rosa é a construção do espaço. O Sertão relatado na obra permite inúmeras interpretações, desde as mais materialistas e geográficas (por exemplo, daqueles que pretendem “redescobrir” o Brasil a partir do itinerário seguido por Riobaldo e cia.) até as mais transcedentais e metafísicas, que procuram explicitar a dimensão que há no livro de convergência entre o épico e o universal. De fato, é possível imaginar o Sertão roseano como uma fusão entre a experiência individual e a histórica, entre o secular e o sobrenatural – enfim, entre “a reflexão existencial e (...) o desvendamento do mundo”, como diria o crítico Benedito Nunes.

Porém, como tudo isso contribui para elucidar a questão do protagonista como mediador cultural? Vamos por partes. Para começar, um trecho da obra que expõe o primeiro dos pontos que quero discutir:

“- ‘Quem é que é o Chefe?!’ – repeti.

Me olharam. Saber, não soubessem, não podiam como responder: porque nenhum deles não era. Zé Bebelo ainda fosse? Esse pardejou. (...) Nenhum deles. E eu – ah – eu era quem menos sabia – porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo! Olharam para mim.” (p. 436)

Este é um dos mais importantes divisores de águas na trajetória de Riobaldo – se, é claro, aceitarmos como plausível o que ele relata. É o ponto em que ele, após tanto conjecturar, finalmente decide pôr em xeque a autoridade de Zé Bebelo, e assim emergir como novo líder dos jagunços. Sua relação de suspeita e ceticismo com a liderança é parcialmente resolvida, pois o agora Urutú-Branco decide tomar as rédeas do bando, e resolver ele mesmo os receios que acometiam a ele e seus companheiros, e que não foram solucionados pelo oblíquo Bebelo. Embora ele continue admitindo que muitas vezes soa confuso e incompreensível para os outros jagunços, não vê outra escolha, exceto a da submissão e abnegação – que, aliás, não condizem com sua personalidade, que concilia prudência e impetuosidade.

Se ele recusa o tom pedagógico (como fica evidente nos gritos de “Viva a lei!” que indicaram a sua chegada) e duvidoso de Zé Bebelo, é porque prefere ser um mediador pautado pelo constante autoquestionamento do próprio sentido de sua empreitada, mas sem perder o senso de realidade, pois dialoga com o mundo sempre “mirando e vendo” as possibilidades concretas de suas ações; isso lhe dá um tom mais transigente, mas sem diminuir sua autoridade diante do grupo. Trocando em miúdos, é só pensar nos momentos que antecedem a batalha final do livro:

“Deu um momento, me tirou disso; e tanto bastou. Doidice, tontura de espírito... – eu repensei, reposto em pé. (...) Ali eu era o Chefe, estava para reger e sentenciar: eu era quem passava julgamentos!” (p. 571)

O trato de Riobaldo com seus companheiros, assim como a maneira como pretende traduzí-lo para o leitor, indicam sua provável satisfação com o papel que desempenha como jagunço letrado. Como se não bastasse sua posição incomum, ele parece seguro de ter feito uma escolha acertada, de usar um conflito semi-político – ainda mais se nos lembrarmos que era contemporâneo e adjacente ao Cangaço – como arena para solucionar seus conflitos interiores e encontrar na última guerra o início de sua paz, na violência em que estava envolvido o ponto de partida para uma vida mais tranqüila. A paixão por Otacília e Diadorim já indica essa transição, e é realçada pelas próprias conclusões que ele extrai depois do derradeiro combate. “Tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.” (p. 595), chega a dizer.

Fica evidente, portanto, que, assim como Bloom, Riobaldo não pretende realizar uma mediação cultural de moldes megalomaníacos e revolucionários. Pelo contrário, ele não vê tanto sentido em fazer sua trajetória dar uma guinada para o “estabilishment”, o que justifica parte de seu repúdio pelo oportunismo político de Bebelo. Além do mais, o próprio Rosa tinha posições políticas pouquíssimo claras, e suas opiniões sobre arte indicavam uma aversão ao engajamento. Há nisso um evidente rompimento com a postura dos regionalistas, que tentavam politizar o privado e fazer grandiosas alegorias nacionais, repletas de estereótipos, colocando-se como aqueles que sabiam expressar através de palavras o que suas nações precisavam – fosse isso a “abertura aos portos da cultura” ou o nativismo. Guimarães Rosa pode ser visto como ponto de inflexão, justamente no ápice daquilo que Angel Rama chamaria de “Boom da narrativa na América Latina” (anos 1950 e 60): ele é pioneiro de uma tendência em que as obras literárias passam a ser majoritariamente pautadas pelo valor estético, ao invés de um conteúdo direcionado e voltado para a “mudança estrutural” do cotidiano.


Conclusão

Após expor separadamente como cada uma das obras trabalha a relação entre o letrado, a cultura e seu povo, façamos, através de quatro tópicos, um estudo comparado de Leopold Bloom e Riobaldo Tatarana. Há mais semelhanças ou distinções na maneira como cada um enxerga seu papel em sua respectiva realidade? Qual o papel dos fluxos de consciência na construção de autoridade? Como se desenvolve a questão da identidade nacional? Por último, até que ponto dura a relação entre política e literatura em “GSV” e “Ulisses”?

1. Como já foi dito, tanto Bloom quanto Riobaldo fogem do rótulo de “salvadores da pátria” e/ou “injustiçados por um meio cruel e corrupto”. Em outras palavras, contentam-se em ser anti-heróis dentro de suas próprias obras, agindo alternadamente com cautela e ousadia. Leopold, enquanto homem mediano, não soa tão deslocado quanto o letrado Tatarana no seu meio, no que tange à posição de poder através do uso da palavra e do conhecimento de mundo; por outro lado, suas origens étnicas e seus valores e opiniões “modernas” encarregam-se de deixá-lo em uma posição muitas vezes desconfortável na tensa atmosfera dublinense. Quanto aos desfechos, Riobaldo, a despeito de sua parcela de culpa na morte de Diadorim, é mais bem-sucedido no seu empreendimento, pois torna-se líder dos jagunços e possivelmente chega à conclusão de que não existe Diabo (enfim, elementos sobrenaturais capazes de moldar a ação humana ao seu belprazer) para se temer. Bloom, ao contrário, fracassa na tentativa de fazer de Stephen Dedalus o varão que lhe falta, sendo assim um Odisseu que não consegue legitimidade diante de Telêmaco, mesmo após tão longa busca.

2. É recorrente as resenhas de “Ulisses” (e “Retrato do Artista Quando Jovem”, também) apontarem como o romance de Joyce como o primeiro a fazer uso consistente da técnica do fluxo de consciência – sem, é claro, nos esquecermos da contribuição de alguns de seus contemporâneos, como Virginia Woolf e Hermann Hesse. Há episódios ocupados inteiramente por monólogos interiores, escritos de acordo com as idiossincrasias dos personagens; por exemplo, o último, “Penélope”, único protagonizado por Molly Bloom. “Grande Sertão: Veredas”, por sua vez, pelo fato de ser integralmente narrado em primeira pessoa, já facilita o uso de tal recurso literário. Porém, em tal obra ele não é utilizado de maneira explícita, mas sim indiretamente. Quando Riobaldo entra em momentos de descrição psicológica, digressões metafísicas ou relatos de reminiscências, a técnica aparece de modo sutil.

Em ambos os casos, todavia, o fluxo de consciência contribui para os personagens moldarem e darem credibilidade para suas respectivas visões de mundo. Enquanto Leopold escolhe meticulosamente um vocabulário que lhe permita ser auto-indulgente diante de situações adversas (por exemplo, quando ele começa a visualizar suas fantasias e fetiches), Tatarana alude a Deus e o Diabo para ter maior força e legitimidade no que fala, assim como repete vários termos e bordões, talvez para contrapor à sua ambigüidade um toque ritualístico, quase sagrado.

3. Embora ambos os protagonistas adorem debates sobre problemas nacionais, nenhum deles comporta-se como patriota ou nacionalista, tampouco xenófobo. Agem como moderados, em contraposição com o amplo engajamento (mesmo que não por ideologias políticas definidas) de Dedalus e Bebelo e a retórica quase apolítica de Molly e Diadorim. Ao mesmo tempo, há a dimensão do tipo de personagem que Joyce e Rosa pretendiam construir. Enquanto o irlandês faz de Leopold uma continuidade da sensibilidade de Stephen, mas com um viés mais dócil – “filho, pai, amante, amigo, trabalhador e cidadão” (p. 11) –, o escritor brasileiro criou um personagem que, muitas vezes, parece movido essencialmente pela fé e por uma coragem de feições confessionais e místicas.

Há sentimento de pertença a uma cultura, portanto? Em parte. A ênfase que os dois autores dão a seus personagens é mais intimista, o que dificulta o surgimento de caracteres obcecados por serem representativos de um povo ou de uma etnia. Isso se opera tanto no âmbito do espaço – morar nos Gerais ou em Dublin não os impede de encarnarem a condição humana universal – quanto no dos valores, pois, embora sejam fortemente influenciados pelas crenças e hábitos de Brasil (Riobaldo) e Irlanda (Bloom), nenhum dos dois procura ser “apenas mais um” de sua comunidade. O enfrentamento com O Cidadão, em um caso, e a resistência em seguir uma vida pacata como a de Seô Habão, no outro, representam bem tal característica em comum.

4. Tudo que foi discutido até agora nos leva a um derradeiro questionamento: “Ulisses” e “Grande Sertão: Veredas” vêem ou não viabilidade na relação entre política e literatura? Uma resposta mais precipitada diria que a opção por privilegiar a estética, tanto em James Joyce quanto em Guimarães Rosa, indicaria a impossibilidade da combinação das duas esferas. Porém, não seria justamente a recusa dos protagonistas ao engajamento também uma forma de se expressarem politicamente?

Trocando em miúdos: ao não serem típicos judeus ou sertanejos, Leopold Bloom e Riobaldo Tatarana demonstram um inversão daquilo que as narrativas regionalistas pregavam: desta vez, predomina a privatização, a introversão do político, em que a perspectiva adotada diante das mudanças sociais é a de não agir como panfletário ou ir à luta adotando as velhas bandeiras de sempre. Leopold e Riobaldo preferem selecionar aquilo que lhes seja relevante e atuar de maneira específica, sem gigantismos. Por exemplo, Tatarana praticamente escolhe ser um jagunço, afinal aquilo em nenhum momento lhe foi imposto ou determinado; ele lutou e matou por aquilo em que acreditava no seu foro íntimo, sem se preocupar em marcar oposição ou apoio ao Governo. Já Bloom aceita a cultura irlandesa – por exemplo, na maneira local de encarar o catolicismo –quando esta lhe permite viver seu dia-a-dia com a consciência tranqüila; por exemplo, no enterro de seu amigo Paddy Dignam, no qual ele foi voluntariamente.

Há, portanto, um certo grau de otimismo em “Ulisses” e “Grande Sertão: Veredas”, ao não se preocuparem em mudar o mundo pela política “macro” e partidária, mas sim em absorver a experiência do cotidiano da maneira que soe mais adequada e particular. Estabeleceram, com isso, inúmeros paradigmas estéticos e estilísticos que ainda inquietam críticos literários de nossos dias. De quebra, conseguiram fazer uma respeitável conexão entre o universo do épico com o do pós-moderno. Sim: eis aqui a já citada revolução na acepção grega do termo.


Referências bibliográficas

CORPAS, Danielle. “Grande sertão e universo urbano”. Disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/daniellecorpas.html.
GILFRANCISCO. “James Joyce: um viajante circular ou babélica explosão”. Disponível em http://www.arquivors.com/gilfrancisco10.htm.
HOUAISS, Antônio. “As obras-primas que poucos leram: Ulisses, de James Joyce”. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT920951-1655,00.html.
JOYCE, James. “Ulisses”; tradução de Bernardina Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
RAMA, Angel. “O boom em perspectiva”. Disponível em http://www.ufrgs.br/cdrom/rama/index.htm#_ftnref33.
ROSA, João Guimarães. “Grande Sertão: Veredas”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Os sites “Nação e Palavra” – http://escritaesociedade.wordpress.com/aula-21-jgr-e-ggm-2/ e http://escritaesociedade.wordpress.com/aula-25-jgr-e-ggm-6/ –, “João Guimarães Rosa – Biografia” http://www.releituras.com/guimarosa_bio.asp23:27 28/12/2008 e “Ulysses (novel) – Wikipedia” http://en.wikipedia.org/wiki/Ulysses_(novel) também foram consultados para a realização deste trabalho.


 

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