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Kaio

 

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30 novembro 2009

Insatisfação Crônica - partes II e III

(Hoje foi a última aula de Oficina. Entreguei a versão final para a professora, e continuarei a reproduzí-la por aqui:)

II

Espelho meu, hoje vi um pianista que me fez lembrar Steven. Não, ele não tinha nem um décimo do talento de meu velho amigo – muito embora as pessoas do restaurante em que ele tocou jurassem que aquela performance foi boa. Porém, de qualquer maneira, recordei-me de uma das poucas amizades que fiz na época em que morei na França.
Nós nos conhecemos durante meu terceiro mês como habitante de Nice. Nos dois primeiros, eu ainda não sabia bem o que fazer e como viver na nova cidade. Cheguei até a ir a algumas daquelas palestras abertas ao público, dadas por sociólogos, escritores e tudo mais. Eles falavam sobre análise do discurso, narrativa polifônica, microfísica do poder, capital simbólico, e tudo aquilo que o mundo acadêmico francês adora. Mas, aquilo já não me interessava mais. Comecei a procurar um emprego; não tanto pela vontade de trabalhar e ganhar dinheiro, mas porque precisava de um mínimo para sobreviver. Só por isso; nunca tive grandes ambições profissionais.
Decidi-me, então, por ser músico de rua, pois eu sabia tocar violão bem, e seria um trabalho que também funcionava como distração. Além disso, esses europeus do Oeste são mais generosos que os do Leste, no sentido de darem mais gorjetas. Espelho, não vá achando que levei uma vida de mendigo, por favor! Meus pais, durante os dois primeiros anos, ainda me enviavam algum dinheiro. Não tanto por generosidade, mas por acharem que pais devem financiar os filhos até uma certa idade. Depois que pararam de me dar essa “mesada”, eu já tinha me organizado de maneira que nunca passei fome ou fiquei sem roupas e moradia. Um padrão de vida modesto, mas o bastante para me contentar.
Foi aí que conheci um rapaz calado na Place Massena, local em que eu mais costumava tocar. Após alguns minutos observando aquela figura frágil e pálida, puxei conversa com ele. Acho que o fiz porque fiquei perplexo ao notar que ele tocava... um piano! Oras, era um instrumento atípico para músicos de rua. Porém, fazia-o com tamanho talento que aquilo parecia um concerto de piano, mas sem ingressos que custavam centenas de francos.
Steven Von Meek tinha aproximadamente a mesma idade que eu; era dois anos mais novo, talvez. Inicialmente, não quis falar comigo; continuou tocando, como se não houvesse ninguém por perto. Quando terminou a música que estava executando (que parecia misturar “Jealous Guy”, de John Lennon, com trechos de Tchaikovsky – acredite se quiser!), ele começou a me olhar, como se quisesse demonstrar atenção pelo que eu viesse a falar em seguida. Comecei perguntando por seu nome; minutos depois, já estávamos discutindo nossas preferências musicais.
Nasceu ali, quando eu menos esperava, uma singela amizade.

Nossos diálogos sempre foram curiosos. Sempre que possível, ele respondia minhas perguntas e colocações balançando a cabeça em sinal de “sim” ou “não”. E, quando falava, era o mais lacônico possível. Foi só com o passar dos meses que ele começou a ser menos tímido, e houve até raras ocasiões em que ele puxou assunto para a conversa. Eu sei, caro espelho, que parece uma empolgação tola da minha parte, mas só conhecendo Steven para saber o quanto os pequenos gestos dele podiam ser, ao mesmo tempo, imprevisíveis e gratificantes.
Durante um bom tempo, foi divertida a nossa parceria musical: o violonista Dedalus e o pianista Steven! O público gostava quando ele tocava sinfonias em ritmo de jazz e eu fazia um folk acelerado no violão. Às vezes tocávamos em lugares separados; eu gostava de dar uma passada pelas redondezas do aeroporto, enquanto Steven era fiel à Place Massena. Mesmo assim, nos víamos quase todos os dias, ainda que fosse só na hora do almoço ou no fim da tarde.
Ele era incansável; quando eu parava para descansar um pouco, ele continuava tocando seu piano, como se parar fosse uma traição à música que executava. Não era raro que algum espectador se emocione com as músicas dele. Eu nem ligava de ser um coadjuvante naquela parceria musical; tocar violão por si só era prazeroso, ainda mais em companhia de um bom colega e de um público que, embora geralmente demonstrasse indiferença, vez ou outra se deixava encantar por melodias que não fossem aquelas do trânsito ou do escritório.
Porém, no fim de meu terceiro ano em Nice, nós já tínhamos nos saturado da música. Eu já tinha perdido minha inspiração; além do mais, o piano de Steven estava meio defeituoso. Foi então que ele surgiu com a idéia de sermos mímicos, pois sua própria forma de se comunicar com nosso público envolvia muitas gesticulações e poucas palavras. Muitos chegaram até a pensar que ele fosse mudo, ou mesmo também surdo.
Arranjamos camisas listradas: a minha era de mangas curtas, acompanhada de uma calça preta na altura da cintura; a blusa dele tinha mangas compridas, além de um suspensório que, combinado com os jeans, assemelhava-se a um macacão. A irmã dele, Julie Von Meek (falo mais sobre ela daqui a pouco, reflexo de vidro), sem saber bem o que achava de nossa “mudança de setor artístico”, emprestou-nos maquiagem para o rosto, e até ajudou-nos na pintura. A minha e a de Steven eram parecidas, embora a dele tivesse um semblante mais soturno, enquanto o meu visual ganhou um aspecto blasé.
Nossa primeira apresentação foi em uma praça bem no centro da cidade. Não me lembro se era a Massena, mas imagino que pelo menos era perto de lá. O inverno já estava acabando, portanto não escolhemos um dia sombrio demais para estrearmos nossa mímica. O pavimento era de cor cinza claro, com poucos desníveis. Parte do público que andava por lá não demorou em perceber a novidade. Havia crianças, idosos, executivos, vendedoras e até universitários. Houve momentos em que mais de 30 pessoas paravam para nos ver, mas também havia dias em que no máximo uma ou duas tiravam um tempo para nos observar. E, assim como nos tempos de músicos de rua, trabalhávamos umas dez horas diárias, com pequenos intervalos.
Posso ser honesto? Às vezes, eu até gostava dessa vida despretensiosa. Era bom não precisar ficar dezenas de horas semanais num escritório ou numa sala de aula, fingindo que está tudo bem em ser um “quadrado” estressado. Ainda mais em um país como a França, em que as pessoas já são inclinadas a não gostar de trabalhar de um jeito “workaholic”, excessivo.

Certa vez, conheci a já mencionada irmã dele, Julie Von Meek. Ela é um pouco mais nova que ele, e não foram poucas vezes em que ela viu nossas apresentações de rua, tanto na “fase musical” quanto na nossa, digamos, guinada profissional para a mímica. Um dia, estávamos tomando um café enquanto Steven estava se arrumando. Resolvi lhe perguntar por que o seu irmão agir daquele jeito tão estranho e misterioso. Ela me contou que nem sempre ele é assim, e que, aliás, quando está com ela, Steven chega a ser meio extrovertido e até maldoso; quando eram crianças, vivia aprontando com ela, aproveitando-se do estereótipo de garoto quieto que todos lhe atribuíam.
Olhe, espelho, não nego que fiquei surpreso. Tudo bem que eu já o vi agir de maneira mais irreverente (no bom e no mau sentido), mas ao saber por Julie que ele tende a agir de maneiras diferentes, dependendo da pessoa com quem está, fiquei em dúvida se Steven era realmente quem se fazia parecer para mim. Fui além nessa paranóia: será que ele de fato valorizava a amizade que tínhamos? A hipótese otimista seria a de que ele não precisa fingir ser uma pessoa estridente e agitada quando está perto de mim. Só que, desde então, instalou-se em mim a desconfiança: talvez ele não apreciasse a minha companhia...
Em meados de 2002, nossa relação começou a se desgastar. Ele andava irritadiço e desanimado. Tudo piorou quando, após algumas noites em claro e indisposições com a irmã, Steven teve uma espécie de colapso nervoso. Era uma mistura de catatonia com depressão, e ele chegou até a pensar em suicídio. Isso me deixou profundamente angustiado, e ajudei-o na medida do possível a melhorar. Mas, depois desse episódio, sem dar explicações, ele começou a se recusar a se apresentar comigo. Inicialmente alegou cansaço, mas depois começou a responder de maneira debochada quando eu lhe perguntava o porquê da súbita mudança de comportamento. Se fosse só por alguns dias, tudo bem, mas aquilo virou rotina.
Ele também teve sérios desentendimentos com Julie, demonstrando pouca consideração pela atenção que ela lhe dava. Acho, contudo, que a reação dela, embora um pouco justificável, foi exagerada: ela resolveu desistir do irmão. Espelho, houve pelo menos duas ocasiões naquele período em que ele passou muito mal, e eu tive que levá-lo ao hospital. Enquanto isso, ela alegava que nunca mais voltaria a se esforçar pelo bem-estar de seu irmão, visto que este nunca dera o mínimo de atenção à ajuda que ela sempre oferecia. Acho que faltou a Julie a capacidade de perdoar, por mais que seu irmão muitas vezes lhe fosse ingrato. Até mesmo porque, conhecendo Steven, eu sei que ele também amava sua irmã, embora agisse daquela maneira displicente.
Steven se comportava de maneira cada vez mais estranha; chegava mesmo a ser hostil comigo. Não se empenhava em sincronizar comigo na mímica, e chegou a importunar alguns dos pedestres quando estes o olhavam com desprezo. Não era incomum que ele começasse a, repentinamente, chorar e gritar comigo. Foi-se criando um mal-estar sobre o qual eu não tinha mais controle - e nem queria ter. Era o estopim para a decisão que eu já estava pensando há algum tempo: abandonar Nice. Já estava farto daquela cidade e aquele ar de hipocrisia francesa (você sabe, fingir que está tudo bem enquanto lamenta e resmunga às escuras), e os desentendimentos com um de meus poucos amigos por lá era o motivo que me faltava.
Mas, continuo essa história amanhã. Até que estou gostando desse desabafo, dessas recordações. Espelho querido!


III

Reflexo de vidro, eu ando em uma fase de reencontros. Hoje, acredito ter visto Paola em um restaurante. Sabe quem foi ela? Minha segunda namorada. A primeira foi Katanyna, na minha adolescência, mas não foi uma relação tão marcante e densa (ou seria tensa?) como aquela que tive com esta jovem romana.
Aliás, sobre essa mudança de cidade, farei um breve prólogo. A capital da Itália é uma cidade realmente linda, e dispensa maiores apresentações. Não me decidi por ela movido por princípios aristotélicos ou coisas do gênero. Para falar a verdade, foi por um acaso que fui para Roma: no dia em que estava na estação, havia uma boa promoção para quem viajasse para tal cidade durante aquela semana. Comprei imediatamente.
Lembra-se, espelho, quando falei dos solavancos, anteontem? Pois é, este foi um dos poucos de minha vida recente. Fiz uma escolha sem maiores reflexões ou planejamentos. Arrisquei-me, sem pensar tanto nas conseqüências (eu seria imigrante irregular, por exemplo), e os resultados foram até bons. Como eu tinha algumas economias, logo consegui alugar um pequeno apartamento, nos subúrbios. Com o dinheiro da mímica, e um ou outro bico (você sabe, aqueles trabalhos temporários, geralmente de fim de ano), daria para eu me sustentar. Foi com base nesse encanto da chegada que agüentei Roma no meu primeiro ano por aqui. Como sempre, não durou muito, e o feitiço estava se quebrando, e uma nova crise existencial se anunciando. Foi quando Paola apareceu na minha vida.

Paola Rossi também levava uma, por assim dizer, vida alternativa; trabalhava como vendedora ambulante de livros, nos mesmos bairros da cidade em que eu circulava. Começamos a conversar porque estávamos igualmente curiosos sobre as profissões “heterodoxas” um do outro. Ela queria entender melhor a minha mímica, e eu, o que a levara a ser uma comerciante autônoma de obras literárias – muitas delas raras e interessantíssimas.
Ela, assim como eu, também chegou a ser universitária. Fazia a Escola de Humanidades, Artes e Ciências Sociais na Universidade de Roma Tor Vergata. Paola era de uma família de classe média alta, e levava uma vida bem confortável, com direito a viagens para o exterior, roupas caras, um apartamento confortável e todos os livros e discos que queria ter. Porém, começou a se cansar da vida rica e pacata que levava; sua juventude ansiava por mais aventuras e incertezas. Até chegou a entrar em depressão, e recusou a terapia e os remédios que seus pais pretendiam lhe pagar. Aos 21 anos, ela decidiu largar a universidade. Arrumou as malas e foi morar sozinha, também nos subúrbios romanos.
Espelho, lembro que Paola tem a mesma idade que eu, mas às vezes parece ser dez anos mais velha, mas também dez anos mais nova. Tinha atitudes maduras, contundentes e dignas de uma mulher independente e que sabe exatamente o que faz. Mas, também costumava se comportar como uma criança mimada, geniosa e constantemente à beira de choramingar para os pais, pedindo socorro. Eu não percebi isso durante as semanas em que fomos apenas amigos; apaixonei-me sem saber desse “lado B” dela. Reparava apenas em seus cabelos castanhos, na sua voz rouca e na sua sensibilidade artística. Porém, quando começamos a namorar, passei a conviver diariamente com seu temperamento instável e inconstante.
Ela brigava por qualquer motivo, desde os mais justos - meu egoísmo, por exemplo - até os mais fúteis, como a sua preocupação excessiva com a opinião alheia, a arrogância não-assumida, o fato de detestar meu gosto musical e até divergências políticas (Paola era comunista, e eu, conservador). Eu, que julgava mais cômodo manter um relacionamento medíocre do que voltar ao vazio conjugal, pacientemente suportava todas as neuras dela.
Porém, chegou um dia em que eu não agüentei aquelas oscilações, com sorrisos coexistindo com lágrimas. Não que fosse uma turbulência insuportável, mas aquela repetição de pequenas alegrias e pequenas tristezas tinha me desgastado. Quando ela falou, pela 18ª vez desde o início do namoro (nas outras dezessete, ela sempre voltava atrás), que queria terminar comigo, eu finalmente disse “sim”. Acho até que ela ficou surpresa.
Quando acabou tudo, após seis meses de relacionamento, eu pensei ter acordado de um pesadelo. Espelho, preste atenção: não é que o namoro foi extremamente ruim, mas era justamente essa alternância entre bons e maus momentos, mas nunca pendendo absolutamente para um dos lados, que me irritou. Se, por um lado, Paola rompeu com a morosidade que reinava em minha vida, por outro só corroborou com as dúvidas e dilemas que tanto me marcaram até hoje.
Nós tivemos bons momentos, é claro. Saíamos bastante, nossa convivência doméstica (ela morou no meu apartamento durante alguns meses) costumava ser agradável, tínhamos altos debates filosóficos e literários... Porém, nossas personalidades eram muito diferentes, e a minha dificuldade em lidar com um relacionamento que demandava tanta paciência e sacrifício emocional, somada à inconstância do humor dela, destruiu aos poucos a paixão que sentíamos um pelo outro. O rompimento, felizmente, foi amigável. De vez em quando, até nos encontramos por acaso na cidade e conversamos.

Como estava dizendo, acho que a vi hoje. Não posso te dar certeza absoluta porque só pude enxergar as costas da garota, muito embora estivesse no mesmo restaurante e na mesma mesa que costumávamos freqüentar. Imagino que era Paola mesmo. Por que não puxei conversa? Estava sem vontade. Mesmo com o clima ameno que se seguiu à nossa separação, algumas daquelas memórias me atormentaram durante o último ano e meio. Ainda me pego olhando para você, espelho meu, à noite, pensando em como minha vida poderia ter sido mais satisfatória. Eu sei perfeitamente que deveria me arriscar mais, e não ficar esperando que as coisas caíssem do céu para mim. Mas sei lá, a letargia contaminou toda a minha alma, e não consigo reagir diante disso...
Acho que, tanto hoje quanto sempre, estava diante de uma miragem. Não sei ao certo. A vontade de encontrar um oásis é tão grande que, mesmo que inconscientemente, acredito em imagens, em impressões. A dúvida que alivia é menos dolorosa que a certeza que desconcerta. Enfim. Mas, veja bem: pressinto um novo reencontro, vidro de reflexo.

 

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