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Kaio

 

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28 dezembro 2009

Insatisfação Crônica - partes IV e V (final)

IV

Querido espelho! Eu sei que você não irá me levar a um Teatro Mágico (afinal, não somos personagens de “O Lobo da Estepe”), mas você é o palco pelo qual eu me represento.

Aqui, sou um ator em um monólogo, mas também um jovem nos seus desabafos mais crus. Sou um artista frustrado, é verdade, mas não a ponto de lamentar totalmente a vida que levo. Poderia ser melhor? Claro. Mas, hoje me ocorreu que não é tão ruim assim levar uma existência em que você não precisa constantemente superar expectativas – as suas e a dos outros. Digo-lhe há algo de bom na mediocridade. O problema é que, quando eu me canso dela, logo entro em desespero, e faço qualquer coisa para voltar a me sentir, de alguma maneira, satisfeito e confortável com minha vida.

Ironia do destino é a pauta do dia. Lembra-se que anteontem eu estava falando sobre Steven? Pois é, hoje eu descobri que ele está na Inglaterra! Quer dizer, não tenho evidências irrefutáveis para lhe confirmar isso, mas o sujeito sobre o qual falaram no noticiário é tão parecido com ele, que não cogito outra possibilidade. O rosto fino, os cabelos curtos, os trejeitos delicados, o comportamento histriônico... E, como não poderia deixar de ser, é um pianista com habilidades sobre-humanas!

Só um instante! Já parou para pensar que é o segundo dia consecutivo em que revejo pessoas que fizeram parte do meu passado? Porém, ao contrário da minha reação quanto a Paola, eu fiquei mais impressionado com esse ressurgimento de Steven. O motivo? Oras, não o vejo há três anos! E, sempre senti que nossa despedida não foi completa.

Naquele fatídico dia, nem devo ter deixado a ele a impressão de que estava me mudando de país; fui muito breve e direto naquela conversa. Minha rispidez partiu de uma mágoa que senti: ele ainda não tinha pedido desculpas pela série de atitudes agressivas que demonstrara nas semanas anteriores. Tomei aquilo como um “Ele não se importa, então que se dane”, e fui embora antes que ele pudesse falar qualquer coisa. Só me lembro de ter visto, de relance, um semblante meio confuso e contrariado.

Voltemos a falar do reaparecimento. Descobri a notícia por meio de um jornal que eu estava folheando hoje, no café da manhã. Parece que já faz três semanas desde que o encontraram. Parece que Steven estava andando ensopado, em uma cidadezinha. Carregava algumas partituras, e sequer tinha etiquetas na roupa! Ele está sendo cuidado por um assistente social em um hospital de uma cidade pequena. Chorava copiosamente, e não dizia uma só palavra quando interrogado. Puxa vida, espelho, nem consegui me concentrar totalmente na minha apresentação hoje, de tão surpreso que fiquei com essa possibilidade de reaparecimento do meu velho companheiro.

O mais legal de tudo é que deram um piano para ele tocar, e provavelmente experimentaram as mesmas sensações que eu quando ouviram aquela combinação tão maluca de música erudita com melodias pop. É um prazer estético que, sei lá, não dá para definir, espelho. Posso tentar? É perturbador, mas tranqüilizante. Delicado, porém cheio de cadências. Ah, só escutando para entender o que é aquilo...

Hoje me vieram em mente várias histórias sobre a época em que éramos amigos em Nice, mas uma delas em especial. Acho que comecei a falar dela antes de ontem, mas não entrei em detalhes. Pois bem. Foi no início de 2001. Eu estava triste e meio amargo, em razão de minha “seca criativa”. Falei-lhe que não sentia mais vontade de tocar violão, que já havia perdido o prazer em fazê-lo. Também disse que só não tinha parado ainda em consideração a ele. Steven, com a testa franzida, após alguns minutos em silêncio, de repente apresentou um olhar decidido, e começou a falar. Discursava com tamanha desenvoltura que cheguei a me assustar.

Ele disse que estava pronto, havia chegado a hora de compartilhar uma idéia que tinha já há algum tempo. “Mímica, por que não? Acho que sou um bom ator, ainda mais em um papel em que minhas expressões corporais valem muito mais do que falas e discursos. Posso representar coisas das mais variadas; desde um jovem idealista até um deficiente mental! Estou certo disso! E você também sempre aparentou vontade de fazer algo mais dramático, Dedalus. Não queria mais ver essa sua cara de decepção e frustração. Repito: mímica, por que não?”

Nem pensei duas vezes, e logo concordei com ele. Outro solavanco, não acha? Pela primeira vez em muitos dias, dormi tranqüilo, contente com aquilo que viria a fazer na manhã seguinte.

Steven e eu já sabíamos algumas técnicas de expressão. Mesmo assim, peguei umas “aulas” com ele para poder fazer gesticulações melhores. Eu adoro aquelas que passam ao espectador a sensação de claustrofobia, como se o mímico estivesse preso em uma caixa. Não é uma das coisas mais lindas e tristes que nós podemos transmitir, caro espelho?

Nunca vou me esquecer desses gestos mais gentis dele. Justamente porque não eram muito comuns, é que eu os valorizava mais. Quer saber? Estou pensando em reencontrá-lo. É sério! Ou, pelo menos, tentar fornecer alguma informação que ajude os investigadores. Devo ter documentos que auxiliariam na investigação. Eles – e o mundo – precisam saber que esse virtuose não é ninguém mais, ninguém menos que Steven Von Meek!

Estou muito empolgado, não acha? Há séculos que não me sentia assim! Acho que vou dormir para me apaziguar. Tenho muito a fazer amanhã, e preciso estar o mais concentrado possível. Até a próxima, meu espelho.

V

De hoje, meu caro, eu posso dizer que tive duas conversas telefônicas importantes. A primeira, pela contribuição que imagino ter prestado; a segunda, pela perplexidade que me causou.

Lá pelas duas da tarde, criei coragem e liguei para o serviço de utilidade pública, que poderia repassar à polícia internacional as informações que tenho sobre meu antigo amigo, que muito provavelmente é o “homem do piano”. Foi algo assim:

- Boa tarde. Meu nome é Dedalus Slowacki. Moro em Roma, e tenho... Tenho informações sobre um indivíduo que a polícia inglesa localizou três semanas atrás. Costumam chamá-lo de “o homem do piano”. Pois bem, acredito que ele é um amigo meu. O nome dele é Steven. Steven Von Meek. Ele tem mais ou menos a mesma idade que eu, seu cabelo é curto e castanho, é descendente de franceses e de nórdicos, e razoavelmente alto. Tem um comportamento tímido, introvertido e excessivamente sensível e, é claro, uma aptidão musical fora do comum. Eu me disponibilizo a enviar, à polícia, fotos dele que eu tirei, ou mesmo algum tipo de documento que possa facilitar a investigação. Tenham uma boa tarde. Arrivederci.

Horas mais tarde, ainda estava com uma empolgação incontida. O que fiz? Liguei para a irmã de Steven! Em parte, queria restabelecer contato, mas também senti vontade de avisá-la da boa nova. Porém, a reação dela não foi nem de longe a que eu esperava:

- Boa noite. Tudo bem, Julie? Lembra de mim? Sou o Dedalus. Dedalus Slowacki. Um amigo do seu irmão, o Steven! Pois bem, é sobre ele que quero falar. Você viu? Ele está na Inglaterra, está até na capa dos jornais! Estão chamando-o de “homem do piano”! Estranho, não? Como assim? Ele está em Nice? Não, mas... Foi ele que apareceu nos noticiários, tenho certeza! Você não leu nada sobre esse caso? Hein, você o viu anteontem? Mas, não é possível. Tem certeza? Você pode ter se equivocado. Que... Ah, tudo bem. Desculpe-me, então. Au revoir.

Ela está enganada. É ele mesmo, poxa! Não tenho a menor dúvida. Como se pode esquecer de alguém com quem se tenha atuado e convivido tantas vezes? E mais: o que deu na cabeça da Julie para ser tão vaga e fria no telefone?

Pensando bem, não é a primeira vez que vejo Steven envolvido numa situação estranha. Teve, por exemplo, aquela vez em que ele sumiu por dois dias depois que um pedestre disse que ele não sabia tocar Tchaikovsky direito. E, três anos atrás, nos tempos de mímica, o colapso nervoso – aquele mesmo que foi o início do fim de nossa amizade, e minha ida para Roma. Mas, essa história de “homem do piano” já passou dos limites!

É verdade que a relação com ele nunca foi das mais fáceis, mas a amizade dele era inestimável. Afinal, ele era um sujeito fascinante, dotado de uma sensibilidade única e de um talento enorme. Mesmo assim, para as coisas chegarem a esse ponto, em que Steven é encontrado maltrapilho, na Inglaterra... É mais um sinal de que eu não conseguiria viver sequer um mês a mais em Nice.

Algo, no entanto, está me perturbando. Sobre a Julie, para ser mais específico. Por que ela está negando tão veementemente o sumiço do próprio irmão? Lembro-me que a relação dos dois era complicada, mas não me parecia tão delicada assim. Que absurdo! Ela mente sobre o paradeiro do irmão!

Sim, ouso afirmar que ela está mentindo! Aquele que vi nos jornais é o Steven, o mesmo com quem convivi durante quase cinco anos! E que não me falem em coincidência; o “homem do piano”, tanto física quanto psicologicamente, só pode ser ele. Julie está despejando suas neuras em relação ao irmão nessa história. Aposto que ela não quer mais lidar com ele, então simplesmente nega, pois julga poder viver sem ele – e, que os outros cuidem de Steven, não é mais problema dela!

Amanhã mesmo vou procurar as fotos e documentos, e enviarei para a polícia. Enfim, só mesmo o Steven para se envolver em uma confusão dessas...

Quer saber? Fico muito chateado com o que está acontecendo. Eu considerava Julie uma boa pessoa; confiável, embora pouco paciente. É, parece que estou em uma fase de “revisão de conceitos” sobre as pessoas que eu conhecia: Steven mais perturbado do que nunca, sua irmã em negação compulsiva, Paola menos ressentida...

E eu, mudei? Sou uma pessoa diferente? Acho que não. Minha vida continua no mesmo marasmo em que sempre estive, e tenho uma culpa enorme nesse processo. Fiz escolhas erradas, que conservaram as coisas do jeito costumeiro. Agora, estou mais uma vez pagando pela minha opção pelo conformismo. Eu simplesmente não sei o que fazer comigo mesmo.

Francamente... Não sei o que acontecerá daqui pra frente. Se o “homem do piano” não for Steven, minha vida continuará a mesma. Mesmo se for, não vai mudar alguma coisa – até porque eu não vou visitá-lo na Inglaterra, ou coisa do gênero. Pois é, mudei de idéia. Seria uma loucura gastar dinheiro para ir até lá só para vê-lo. Não acho que ele poderia dar valor ao meu gesto, portanto seria um esforço inútil.

Como você vê, espelho, eu mal voltei a me sentir melhor, e já voltei à perturbação. Não consigo me concentrar em nada, estou andando em círculos pelo quarto há horas, e nem sei se amanhã terei disposição para acordar cedo e ficar brincando de “Oi, estou preso em um cubículo!” no meio da rua.

Não existem coincidências; apenas simetrias. Espelho, é como se tudo fosse um eterno retorno, em que aquilo que se faz há, sei lá, sete anos voltasse a se repetir. E assim por diante. As pessoas dizem acreditar no acaso, mas eu acho que é tudo uma questão de reflexos. Convergências e divergências. O côncavo e o convexo, em um combate no qual um tenta distorcer ao outro, impedindo-se mutuamente de encontrar a “justa medida”. Afinal, é preferível se iludir com uma imagem agradável que retornar o olhar, de volta para aquilo que está sendo refletido.

Se já estou pensando na próxima fuga? Não... Por enquanto. Sei que não vai demorar muito para eu me frustrar com Roma. Tentarei, contudo, adiar aquilo que é inevitável. Até mesmo porque envolve algo que eu já perdi a esperança de controlar. Preciso dizer o que é? O tédio inescapável. Que horrível é constatar que, como sempre, sou o nômade que sofre de insatisfação crônica...

Acabou-se a hora de (mais) uma conversa séria, meu espelho, espelho!

 

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